quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Paradas e cruzadas


Andava despercebido quando de repente ouvi um som de música dos anos setenta e oitenta bem ao longe. Quando chegamos perto, Ascânio e eu vimos uma multidão reunida, muita sirene de polícia, corpo de bombeiros, um trio elétrico e muita, mas muita lata de cerveja espalhada por uma longa trilha até que nossos olhos perdessem o rastro.
Até então eu não havia reparado no verdadeiro motivo da multidão – e nem se quisesse havia visto por causa da miopia. Deu-se tudo quando vejo o Ascânio, um amigo que eu pensava conhecer a anos, idôneo e que sempre confiei em seus comedidos conselhos sobre a vida, filosofia e ciências ocultas, sair correndo no meio da multidão gritando “eu também sou lésbica, eu também sou lésbica...”. Quando reparo de fato, leio em um letreiro enorme “Parada Lésbica! Viva a Liberdade Sexual”.
Enquanto me aproximava, meio acanhado e vestido inadequadamente para ocasião me embreei por entre a multidão que reivindicava liberdade sexual, o fim do preconceito, liberação do casamento e uma igreja só delas em que tivessem nas paredes apenas imagens de santas. Elas eram de todos os jeitos: Executivas, Roqueiras, Punks, menininhas doces e meigas com vestidos floridos, meias até metade das pernas parecendo a Alice no país das maravilhas que beijavam suas parceiras com um frenesi inimaginável. Na hora lembro-me de ter sentido calafrios. Outras, com seus cabelos curtos como o meu um dia foi, pois hoje eles estão quase com um dia era os delas. Correntes e piercings por todos os lados. Homossexuais de todos os tamanhos e idades aderiram à parada de mãos dadas aos seus respectivos parceiros. As mulheres, a maioria delas, eram belas e atraentes, ou seja, elas estão em todas as partes e isso de certa forma é meio assustador. Eu tento imaginar qual foi a parte que nós, homens, héteros erramos.
Enquanto isso
tive uma visão terrível do Ascânio com toda sua magreza assustadora rodando sua camisa gritando “eu também sou lésbica” para os quatro cantos.
Tive que deixar o Ascânio para trás caso contrário perderia minha prova. Passei de todos. Das lésbicas, dos Guêis, do carro de polícia e da garota com seios de fora para continuar meu caminho. Mas a poucos metros dali vejo outro trio elétrico, com um senhor de terno e gravata e uma enorme bíblia na mão, pessoas com as mãos levantadas aos céus, de olhos fechados, com suas energias espirituais elevados até o último grau, cantando Batista Alagoinha. Tive certeza que vi alguém ascendendo aos céus.
A fé daquelas pessoas era inabalável, indestrutível. Senti uma paz interior que se desfez em poucos segundos quando percebi que os dois grupos iriam se colidir ali mesmo, a meio caminho no exato lugar onde eu estava não havia como correr.
Em pouco tempo as musicas dos grupos começaram a se misturar. As lésbicas começaram a gritar Quadrarões, cafonas, os aleluias... Enquanto do outro lado os evangélicos respondiam Sai demônio, prostitutas da babilônia, Jezebel, o Juízo final está próximo... As multidões numa gritaria sem fim se misturaram, os trios pararam e os dois líderes dos movimentos trocavam insultos apavorantes. A polícia tentou vestir a garota com os seios de fora que o jovem evangélico tentava apalpar-los e ao mesmo tempo separar uma lésbica de terno e calcinha que, soube-se depois chamava-se Jorge, e dava bibladas na cara de uma irmã que tentava levar-lhe a palavra de Deus. E num minuto a confusão estava generalizada.
Eu naquele meio tentava desviar-me dos ataques, de um lado pelos crentes que achavam que eu era guêi e do outro pelas lésbicas que acreditavam que eu era crente. O pastor jogou uma bíblia na cabeça da líder do outro movimento e foi acertado por um salto jogado pela garota vestida de Alice no país das maravilhas. As músicas continuavam ligadas no mais alto volume, mas deu empate. O Ascânio, em cima do trio dos evangélicos gritava: Eu também sou lésbica, eu também sou crente, eu não sei o que sou...
O caminho continuou com muito custo. A polícia deu um jeito de desviar os trios mas algo havia mudado drasticamente. As irmãs da igreja estavam beijando-se enquanto as lésbicas gritavam-se “arrependam-se raças de víboras!”. O pastor viu um monte de pessoas entulhadas e saiu correndo dizendo Eu sou a cereja, eu sou a cereja!
A garota de seios de fora sentou-se em uma das paradas para ler uma página da bíblia e o garoto crente que tentava pegar-lhe os seios, beijava seu colega recém conhecido. Tudo parecia um caos terrível. Eu apenas agachei e comecei a chupar meu dedo que é o que eu sempre faço em situações de calamidade pública. Mais no canto, um policial tirou as calças, ficou apenas de coturnos, sinto operacional e quepe parecendo um cantor do “Vilage peapols” e seu colega dizendo sai de cinco em cinco em ordem alfabética pra não fazer tumulto.
Quando se afastaram, os crentes com o trio das lésbicas e as lésbicas com o trio dos crentes, ficou apenas eu, um rastro de bíblias, latas de cervejas, preservativos e vidrinhos de óleos da unção e os Ascânio gritando eu também sou...
Parece até mentira.