domingo, 27 de dezembro de 2009

Rituais Macabros: Um tratado sobre a incompletude humana




Em tempos de crise e inércias de paradigmas procura-se alívio aos males da alma das mais variadas formas. Enquanto na Índia milhares de asmáticos peregrinam atrás de uma misteriosa pasta amarela a base de ervas onde engolir um peixe vivo que pode ser uma sardinha ou um Murrel com o objetivo de se livrarem da asma faz parte de um ritual. Para que a cura seja completa o beneficiário deve repetir a dose por sete anos e seguir uma dieta especial com mais de 25 alimentos diferente incluindo carneiro, arroz, açúcar, manga desidratada, espinafre e manteiga de garrafa por 45 dias.
No Brasil alguns, objetivando a completude humana e em resposta a falta de paradigma, andam a agradecer pelas bênçãos que recebem num estranho ritual.
O ritual envolve orações ao deus todo poderoso com direito a papéis especiais marcados com números e cifrão (comumente conhecidas como dinheiro) em regiões do corpo que se queira uma bênção especial. Dessa forma pode-se colocar na cueca, nas meias, sutiãs, nas cestas e em lugares menos comuns como bolsos, carteiras e na contabilidade oficial.
Após os agradecimentos que devem ser em círculos com três componentes - alguns manuscritos sagrados permitem quatro ou mais dependendo da quantidade de papéis - abraçados em estilo dança judaica e obrigatoriamente com uma tremenda cara de pau. Como recompensa à devoção os fieis recebem grandes quantidades de panetone, uma espécie de pão doce de origem milanesa com leve toque de baunilha recheado com frutas cristalizadas, em suas residências.
Para que as bênçãos sejam completas é preciso que os participantes entrem numa dieta de silêncios, segredos sobre a real origem e composição dos componentes do círculo de agredecimentos e sobretudo nunca, repito, nunca os rituais devem ser filmados sobre risco de que as bênçãos se transformem em castigo e dor nas partes onde os papéis com cifrão foram colocados.
Aos rituais foram feitas várias críticas e a comunidade científica crê que “devido a falta de provas clínicas sobre os efeitos dos fenômenos e a não revelação de nenhuma prova concreta impossibilita que organismos mais sérios investiguem sobre a veracidade dos fatos” comenta o Dr. Hanibal Lecter.


A falta de completude do espírito humano é um fato antigo e leva várias gerações em busca de projetos de vida ardilosa baseados no engodo e na falta de caráter. O comportamento baseado nessas premissas levam ao excesso, ao descaso, à insensibilidade para com o próximo... Pelo contrário, a ingenuidade de pessoas que se apegam nos mais variados santos e milagres modernos é usada por outros seres humanos igualmente incompletos, mas sem o menor escrúpulo, onde panetones, cestas básicas, chinelos e morte são as únicas alternativas aos miseráveis de espírito e dinheiro (esse papel com cifrão e números tão desejado em nossa civilização).
O que ocorre na verdade é uma completa falta de humanidade que torna o político ladrão de milhões dos cofres públicos que poderiam ser utilizados para saneamento básicos de comunidades esquecidas por todos, para a construção de escolas, hospitais e todos os outros aparatos sociais que fazem da constituição de 1988 algo real, palpável e tangível; a falta de humanidade que faz do miserável um ladrão de pão ou do jovem de 13 anos um assassino em série. Como escreveu Eduardo Galeano no final de tudo “todos compartilham o mesmo desprezo pela vida humana”.
Enquanto levas de panetone estão sendo entregues em todas as partes, enquanto pessoas não estão mais sensíveis às crianças pedindo no sinal sabe lá Deus por qual motivo, enquanto a pobreza for olhada como algo sujo que deve ser canalizado e tirados da vista do mundo pré moldado, o mundo realmente estará submerso pelo incompletude, pelo desespero, pela agonia e se dará bem que for escritor de livro de auto ajuda ou fabricante de panetones.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Ode à carne de minha perna





Ode à Carne de Minha Perna

Deitado na cama da clínica tive uma vaga sensação de estar grávida. Ou melhor dizendo, grávido. Era engraçado sentir aquele gel frio como a morte deve ser fria sendo espargido pelo meu abdômen nu, levemente dilatado pela bexiga que em alguns instantes explodiria em um grande e poderoso jato de urina. Dias antes a recomendação era que o exame obdominal total deveria ser feito com a bexiga cheia e pela manhã. O que não sabia é que seria atendido depois das 11h quando na verdade cheguei à clínica às 6h50 min. Burocracias e burocracias.
Enquanto sentia o doutor, um homem lacônico e incompreensível como qualquer doutor o é, com aquele aparelho de ultrassom percorrendo os gomos adiposos de minha barriga não mais jovem, senti-me preenchido de um ser que respirava e se mexia dentro de mim. Vislumbrei essa onírica cena e pensei em meu filho, fruto de minha obsessão por coito, de minha sede de suor e fluidos corporais, fruto de minha embriaguês voluntária metamorfoseada em células, tecidos, órgãos, sistemas. Assume uma forma medonhamente humana como era de se esperar após anos a fio de evolução para que em minutos transforme minha vida na lembrança bela de um sorriso.
Ao deparar-me com ondas longitudinais transformadas em sons distinguíveis, ouço o pulsar do meu coração como se dele fosse. Sinto as entranhas revolver-me com as cabriolas executadas pelo pequeno e incompleto peralta. Percebo minha energia vital correndo pelo meu sistema circulatório e não mais sei discriminar se é energia minha ou dele.
Enquanto isso, alheio à todo colóquio interno, indiferente à introspecção filosófica que ali vem sendo engendrado, o doutor comenta meu interior preto e branco, faz medições de meus órgãos internos, aperta minha bexiga, murmura algo inteligível, aperta minha bexiga novamente e pede que eu me vire de forma que ultrassonografe meu rim obsoleto. “Tudo certo, aparentemente”.
“tudo certo, aparentemente” diz o doutor, pois não pode dar certeza. Eu, a manhã inteira na clínica e o doutor me vem com um “aparentemente”.
Saio às pressas para não acertar o doutor com meu poderoso jato, que de tão apertado já me escorria uma fina lágrima de canto. Enquanto acerto o sanitário com fúria penso no vislumbre, penso em meu filho, carne de minha perna, penso na mina gravidez não natural, penso em seu sorriso convidativo, na sua tosse, nas suas brotoejas, nas suas fraldas molhadas, no seu carrinho barato, na sua roupinha barata, nas sua bolsa, no pentinho suave para cabelos suaves, no seu pescoço que nunca vi e o amo mais ainda.
Saio da clínica correndo, um grávido louco correndo e gritando - sem pegar resultado, sem pagar o exame – com um pensamento fixo.