domingo, 24 de abril de 2011

Matemática Simples




Pensei em ti por novecentos e noventa e nove dias seguidos. Cada dia pensei em ti novecentos e noventa e nove vezes, sem falhar nenhuma vez em nenhum dia. Para que toda liturgia sacra se cumprisse conforme todos os preceitos sacros de tua santidade demoníaca, via todas as manhãs claras e não claras, as nossas fotos tiradas na polaroide naquela viagem que fizemos à marte, naquele dia de verão na pista de neve no sul do polo sul, no dia em que completastes novecentos e noventa e nove anos e te fiz um bolo tão delicioso que jogamos no lixo juntos. Ao todo eram novecentos e noventa e nove fotos, meio amareladas pelo tempo e pelo manuseio. Todas elas com teu sorriso pequeno e teu olho de águia a me olhar e me encantar e me perder... na esperança de ser encontrado por ti que me fizestes essa promessa, mas que agora não cumpres.

Ao meio dia - exatamente ao meio dia - almoçava a refeição que tu mais gostavas e bebia um enorme copo de suco de goiaba sem se quer gostar de goiaba. À noitinha, quando o sol vermelho turvo já tinha descoberto seu novo posto lia religiosamente teu diário que esquecera em minha gaveta secreta de pertences secretos e até hoje, depois de muito tempo, não sabes onde colocou e imaginas quem lera os pensamentos secretos que um dia foram, boa parte deles, pra mim. E assim vivi todos os novecentos e noventa e nove dias, um após o outro e um dia de cada vez com uma constante sensação de membro amputado, com o eterno pressentimento de que o despertador tocaria a qualquer momento e tudo aquilo fosse apenas um sonho ruim (de péssimo gosto, diga-se de passagem).

Entre ver as fotos, almoçar teu almoço e ler-te pensar eu fazia o que tinha de fazer: trabalhava, estudava, pagava as dívidas, bebia, fazia dívidas, cortava o cabelo, fazia a barba, tentava dormir (sem sucesso), bebia, tentava conhecer outras pessoas, conhecia outras pessoas (sem sucesso), conversava com amigos, tomava café, consertava o pneu da motocicleta velha com motor fundido, cuidava do meu filho, lia todos meus e-mails, respondia todos os meus e-mails, lavava as roupas, passava as roupas, bebia, tentava ser uma pessoa decente e normal apesar de não ser normal.

Lembro-me hoje (e até com certa comicidade que na época não tinha) que esperei por teu telefonema - que nunca veio – Olhei na caixa de chamadas recebidas dos celular novecentas e noventa e nove chamadas que não foram as suas. Nenhuma se quer, muito embora houvesse novecentas e noventa e nove ligações para ti, sem resposta ou perspectiva de resposta e fui me convencendo de que estava perdendo a conta dos meus dias, das minhas horas vazias de números complexos fatoriais... tentei por uma ultima vez recompor todos os fragmentos de mim espalhadas em novecentas e noventa e nove partes e integrá-las com Leibniz assim ensinou, mas não tive sucesso, matemática nunca foi meu forte.

Quando finalmente cheguei ao noningentésimo nonagésimo nono dia, faltando novecentos e noventa e nove segundos para seu fim notei que a matemática requerida para a situação era tão complexa que debruçava-se sobre si mesma milhões e milhões de vezes criando um atrator estranho que levou-me de ti, das tuas fotos minhas, do teu almoço, do teu diário e do teu desprezo: hoje, o milésimo dia se quer penso noventa e nove virgula nove por cento que estive ao seu lado, que fui você, quis você, chorei você, dormir (ou não dormi) você... penso apenas - e agora com novo ar de obsessão – nos zero vírgula um por cento que poderia ter vivido contigo.

2 comentários:

Polianna Martins disse...

Adorei esse texto, muito sua cara de verdade e isso mostra o grau q a solidão afeta seus pensamentos diarios. Apesar de eu ter uma vaga esperança de que ele foi escrito antes, e estava guardado em uma gaveta de pertences secretos. askaoskasoas

abração.

Saulo Madrigal disse...

Pior que não. Esse está quentinho...mas ele não reflete solidão, na minha cabeça ele é o início da cura para a dor de cutuvelo. É o início do processo de reflexão sobre a realidade.