domingo, 24 de fevereiro de 2013

O Corpo que Foge





E antes que o primeiro fiapo de luz matinal despontasse por entre o vidro da janela quebrada, ela se ia. Não esperava o café. Não esperava o bom dia. Não esperava pra ler o jornal de domingo. Apenas ia e deixava no ar um perfume familiar e indecifrável. Nunca quis o abraço nem mesmo os ritos rotineiros consequentes da intimidade declarada.
O sono das seis... ah! Aquele sono gostoso onde qualquer minuto se torna fácil meia hora. Aquele sono que torna tudo tão confuso e onírico... naquele sono, justamente entre espelhos e fumaças, era a hora que ela aproveitava para fugir sorrateiramente. Obviamente não calçava os sapatos. Obviamente não recolocava os brincos, pulseiras e colares que sempre enfeitavam seu pescoço esguio e lânguido. Simplesmente ia como alguém que nunca estivera.
Não fosse pela brisa da manhã ou pela inevitável dispersão das partículas facilmente a encontraria: o rastro do perfume indistintamente familiar a denunciaria. A dispersão rápida deixava-a fora de perigo, entretanto. Deixava-a inerte e invisível. Sem sombra ou reflexo e ela se ia despreocupada e livre. Livre não, diria libertada, desapegada e solta como soltas são as partículas solitárias e nobres.
E eu cá permaneço nos sono das seis... eu cá fico! Ludibriado pelo perfume, pela atmosfera feita para ser ilusória: o imbróglio da imagem desfocada. No infortúnio da consciência míope, no ledo engano de um sonho de superfície me aconchego entre os espaços vazios da cama, entre os travesseiros macios, entre o cobertor quente e viçoso. Numa atmosfera feita para ser ilusória...
Mas quando finalmente o fiapo de luz, o raio tímido penetra a janela quebrada percebo fácil que não fora um sonho, mas sim apenas uma das realidades possíveis de um futuro em meio ao caos.

Um comentário:

Diário indiscreto e outras confissões... disse...

Isso vem da alma desse meu amigo,eterno apaixonado que faz de uma noite, mesmo que seja com uma mulher estranha, uma noite única.Admiro os corações que para serem saudáveis precisam está preenchidos, amando.Admiro isso, como admiro tudo que vc escreve.Meu amigo, meu irmão, Saulo Madrigal."O promíscuo romântico."