E antes que o primeiro fiapo de luz matinal despontasse por entre o
vidro da janela quebrada, ela se ia. Não esperava o café. Não
esperava o bom dia. Não esperava pra ler o jornal de domingo. Apenas
ia e deixava no ar um perfume familiar e indecifrável. Nunca quis o
abraço nem mesmo os ritos rotineiros consequentes da intimidade
declarada.
O sono das seis... ah! Aquele sono gostoso onde qualquer minuto se torna
fácil meia hora. Aquele sono que torna tudo tão confuso e onírico...
naquele sono, justamente entre espelhos e fumaças, era a hora que
ela aproveitava para fugir sorrateiramente. Obviamente não
calçava os sapatos. Obviamente não recolocava os brincos, pulseiras
e colares que sempre enfeitavam seu pescoço esguio e lânguido.
Simplesmente ia como alguém que nunca estivera.
Não fosse pela brisa da manhã ou pela inevitável dispersão das
partículas facilmente a encontraria: o rastro do perfume
indistintamente familiar a denunciaria. A dispersão rápida
deixava-a fora de perigo, entretanto. Deixava-a inerte e invisível.
Sem sombra ou reflexo e ela se ia despreocupada e livre. Livre não,
diria libertada, desapegada e solta como soltas são as partículas
solitárias e nobres.
E eu cá permaneço nos sono das seis... eu cá fico! Ludibriado pelo
perfume, pela atmosfera feita para ser ilusória: o imbróglio da
imagem desfocada. No infortúnio da consciência míope, no ledo
engano de um sonho de superfície me aconchego entre os espaços
vazios da cama, entre os travesseiros macios, entre o cobertor quente
e viçoso. Numa atmosfera feita para ser ilusória...
Mas quando finalmente o fiapo de luz, o raio tímido penetra a
janela quebrada percebo fácil que não fora um sonho, mas sim apenas
uma das realidades possíveis de um futuro em meio ao caos.