quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Ode à carne de minha perna





Ode à Carne de Minha Perna

Deitado na cama da clínica tive uma vaga sensação de estar grávida. Ou melhor dizendo, grávido. Era engraçado sentir aquele gel frio como a morte deve ser fria sendo espargido pelo meu abdômen nu, levemente dilatado pela bexiga que em alguns instantes explodiria em um grande e poderoso jato de urina. Dias antes a recomendação era que o exame obdominal total deveria ser feito com a bexiga cheia e pela manhã. O que não sabia é que seria atendido depois das 11h quando na verdade cheguei à clínica às 6h50 min. Burocracias e burocracias.
Enquanto sentia o doutor, um homem lacônico e incompreensível como qualquer doutor o é, com aquele aparelho de ultrassom percorrendo os gomos adiposos de minha barriga não mais jovem, senti-me preenchido de um ser que respirava e se mexia dentro de mim. Vislumbrei essa onírica cena e pensei em meu filho, fruto de minha obsessão por coito, de minha sede de suor e fluidos corporais, fruto de minha embriaguês voluntária metamorfoseada em células, tecidos, órgãos, sistemas. Assume uma forma medonhamente humana como era de se esperar após anos a fio de evolução para que em minutos transforme minha vida na lembrança bela de um sorriso.
Ao deparar-me com ondas longitudinais transformadas em sons distinguíveis, ouço o pulsar do meu coração como se dele fosse. Sinto as entranhas revolver-me com as cabriolas executadas pelo pequeno e incompleto peralta. Percebo minha energia vital correndo pelo meu sistema circulatório e não mais sei discriminar se é energia minha ou dele.
Enquanto isso, alheio à todo colóquio interno, indiferente à introspecção filosófica que ali vem sendo engendrado, o doutor comenta meu interior preto e branco, faz medições de meus órgãos internos, aperta minha bexiga, murmura algo inteligível, aperta minha bexiga novamente e pede que eu me vire de forma que ultrassonografe meu rim obsoleto. “Tudo certo, aparentemente”.
“tudo certo, aparentemente” diz o doutor, pois não pode dar certeza. Eu, a manhã inteira na clínica e o doutor me vem com um “aparentemente”.
Saio às pressas para não acertar o doutor com meu poderoso jato, que de tão apertado já me escorria uma fina lágrima de canto. Enquanto acerto o sanitário com fúria penso no vislumbre, penso em meu filho, carne de minha perna, penso na mina gravidez não natural, penso em seu sorriso convidativo, na sua tosse, nas suas brotoejas, nas suas fraldas molhadas, no seu carrinho barato, na sua roupinha barata, nas sua bolsa, no pentinho suave para cabelos suaves, no seu pescoço que nunca vi e o amo mais ainda.
Saio da clínica correndo, um grávido louco correndo e gritando - sem pegar resultado, sem pagar o exame – com um pensamento fixo.

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